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Marcília Rosário e Reinaldo Santiago

Confira a transcrição da entrevista na íntegra:

Carla: Hoje a gente vai conversar com Marcília Rosário e com Reynaldo Santiago que fizeram parte também do começo, bem do comecinho mesmo da instalação do departamento de Artes Cênicas da Unicamp. Naquela época as aulas eram dadas debaixo das árvores. Eu preciso falar pra vocês, registrar aqui que, quando eu comecei fazer teatro, a primeira peça que eu fiz na minha vida eu fiz com a Marcília e com o Reinaldo, lá no Tênis Clube. Melhor base do que essa, assim, importantíssima, que é disciplina, responsabilidade, ética profissional na hora do trabalho, então, eu não podia ter começado melhor, viu Marcília!

Marcília: Ai, que saudade daquela época do Tênis! 

Carla: Tá, eu acho que vamos começar do começo: quando vocês começaram a fazer teatro e como é que foi isso?

Reinaldo: Eu comecei a trabalhar no Sesi, né, de office-boy, e de repente entrou assim uma trupe lá. Porque o Osmar Rodrigues Cruz, que dirigia os espetáculos, né? Eu vendo aquelas pessoas, senti que eu tinha mais a ver com eles do que com o pessoal do escritório lá, né? Comecei porque eu peguei os currículos, né? Eu trabalhava no departamento pessoal, tá? Aí, eu vi que eles fizeram a Escola de Artes Dramáticas e comecei a ir atrás, comecei ver os espetáculos do SESI e até que chegou o momento em que eu fui fazer um curso no Sesc, na Doutor Vila Nova. Era uma época muito interessante, porque existiam os festivais de teatro. O próprio Sesc tinha um festival que era um negócio fantástico. Eles traziam grandes figuras, grandes diretores e eu comecei fazer lá, né? Isso foi em 71 talvez, por aí, 71, e lá encontrei a Marcília, né? Foi muito legal porque, de repente, esse cara que se chamava Ibsen Wide, ele convidava as pessoas, né? Convidou, por exemplo, o Silnei Siqueira para conversar com a gente, o Sylvio Zilber. Aí a gente começou a ter um contato muito interessante com pessoas que faziam teatro naquela época. A partir daí montamos “Woyzeck” e, depois disso, a gente meio que se direcionou para ir para a EAD, entendeu? O meu começo foi mais ou menos isso. E, nas minhas memórias, eu tenho o Circo-Teatro, né? Porque eu era moleque e morava na Vila Carrão, na Zona Leste, e sempre ia Circo-Teatro lá. Circo-Teatro era a grande diversão daquela época! Eu via aquelas coisas todas na minha frente e pensava: “Nossa! Como é que eles fazem isso?” Então o interesse por essas coisas vai formando uma alquimia na alma da gente, né? Encaminhando a gente para um determinado destino.

Marcília: Eu era assim, do lado das ciências, né? Eu já era química e estudava física no Mackenzie, e trabalhava com isso e era uma boa analista química. Mas, ali do Mackenzie, descendo a Rua Dr. Vila Nova, eu vi um cartaz assim “Curso de Teatro”, e eu subi e nunca mais voltei para o Mackenzie. E já entrei pro curso e encontrei o Reinaldo lá. Eu ganhava uma fortuna, né? Aí passei a não ganhar nada, mas encontrei o que eu queria, a minha vocação. 

Carla: E, desde quando vocês se encontraram, já começaram a namorar e nunca mais se separaram.

Marcília: É, foi por aí. Foi lá mesmo que a gente montou o Woyzeck. E o Reinaldo, sem idade nenhuma que… eu acho, né? Ele era bem jovem, fazia o personagem principal por causa da voz. Eu tinha uma fala, mas fazia a peça inteira lá. Então, dali a gente foi pra EAD.

Mônica: Marcília você tinha alguma referência artística? Você gostava de teatro já?

Marcília: Eu sou de uma cidade assim que era muito agreste, né? No norte do Estado. Mas eu tenho também a referência do Circo que a gente entrava por baixo da lona, né? Depois que começava a sessão, a gente entrava. Agora, na minha vida, meu pai era dançador de cateretê, moda de viola. Essas coisas mais sertanejas, né? Sertanejas não: caipiras. Muita catira. Minha casa tinha catira toda semana. Desse lado mais da cultura popular brasileira.

Mônica: Bastante musical também, né?

Marcília: Muito, muito!

Mônica: Musical e corporal, né, porque que catira é super corporal?

Marcília: É, e a gente dançava uma catira de arrancar lasca chão. Muito bom!

Mônica: Olha a curiosidade, né? Você… o Pessoal do Victor nasceu lá na EAD. Vocês fizeram parte da EAD? E por que que escolheram esse nome? Vocês faziam parte do grupo, né? Quem que escolheu? Como é que foi?

Marcília: Não foi uma escolha! Nós nos formamos na EAD, com a peça “Victor ou as Crianças no Poder”, que fazia 25 anos do surrealismo, né? E o Celso (Nunes) optou por a gente fazer essa peça. Só que a peça fez muito sucesso e a gente foi colocar em cartaz. Nos convidaram para ir para o Ruth Escobar com a peça e, naquele tempo, a gente tinha críticas, né? Os críticos Sábato Magaldi, Yan Michalski e, um pouco depois, o (Alberto) Guzik. E eles falavam: vai ver a peça do pessoalzinho do Victor, vai ver o pessoalzinho do Victor, o pessoalzinho do Victor… saía a crítica “o pessoalzinho do Victor” … Gente, por que não assumir o Pessoal do Victor? Aí assumimos esse nome que era de “Victor ou as crianças no poder”.

Mônica: E esse… a escolha de nome foi tão espontânea quanto à formação do grupo? O grupo se formou espontaneamente também? 

Marcília: Sim, dali a gente continua junto, né? Éramos o Reinaldo, o Márcio (Tadeu), o Paulo Betti, a Eliane (Giardini), o Waterloo (Gregório). O Adilson (Barros) não fazia parte, que ele entrou bem depois no grupo também.

Reinaldo: A formação do grupo veio em função de um convite que nós recebemos. Aliás, na verdade eu sou da turma anterior. Eu que me juntei com a turma. Marcília entrou um pouco antes que eu na EAD. Recebemos um convite para ir para Palermo, no festival de Palermo na Sicília, e aí a gente fala assim: “Queremos ir, pronto!”, entendeu? “Nós vamos”. Aí, um amigo nosso, Carlos Eugênio Marcondes de Moura, o Carlinhos, uma pessoa maravilhosa, que deu a ideia de a gente fazer um leilão para conseguir as passagens. Um leilão de quadros de artistas famosos. A gente conseguiu um (Alfredo) Volpi, um (Aldo) Bonadei. E isso pagou o nosso voo.

Marcília: O Dr. Alfredo Mesquita abriu um baú e deu um monte de quadros famosos pra gente.

Reinaldo: E essa organização que foi a base da criação do Pessoal do Victor

Marcília: Nós éramos em 22 pessoas. Conseguimos as passagens para as 22.

Reinaldo: Inclusive a Renata Pallotini, que era a diretora da EAD na época, foi junto. Isso deu uma experiência muito grande. Mas não foi todo mundo, naturalmente, que entrou nessa. Justamente esse núcleo que a Marcilia falou, foi o que se organizou. Então, quando nós voltamos da viagem o grupo já estava pronto, com estrutura, com tudo pra seguir em frente.

Marcília: Esses principais… não é “principais”, essas sete pessoas, porque as outras não tinham muito a ver, né Reinaldo?

Reinaldo: Essas outras pessoas, alguns falavam: “Vocês não vão! Nós não vamos! Vocês não vão conseguir”. Sabe como é que é né?

Marcília: Aí chegava na Itália tinha que comer macarrão, nhoque, mas a gente queria arroz com feijão, mas não tinha. Então come o que tem. Mas, enfim, foi bom! Aí o Reinaldo e a Eliane que cuidaram da grana.

Mônica: Reinaldo e Marcília, vocês lembram quanto custava a rifa das obras de arte, era muito caro, era barato?

Reinaldo: Foi assim, um leilão oficial. Nós chamamos um leiloeiro oficial. Não lembro o nome dele. Acho que era Irineu Ângelo. Mesmo naquela época tinha essa organização. Não podia montar o leilão sem leiloeiro oficial. E, olha eu não sei exatamente, mas imagina 22 viagens, 22 bilhetes para ir até Palermo.

Marcília: E sobrou dinheiro pra gente gastar lá.

Reinaldo: É. É o que eu falei. Só o Volpi, eu não lembro em termos de dinheiro, porque nossa moeda mudou tanto. Mas eu sei até que foi a Ilka Marinho Zanotto, que era critica também, ela comprou o quadro. Ela falou: “Eu vou levar vocês pra Europa. Esse quadro é meu”. E ela acabou comprando. O que eu sei é que foi assim, uma surpresa. Eu lembro que quando eu fui, quando a gente foi comprar as passagens, os caras desconfiaram da gente né? Fizeram piada da gente, né? Os caras falaram: “Olha, não quero cheque, não quero nada. Traga o dinheiro, tá?” Aí eu falei: “Olha, pode deixar! Que dia que você quer, que horário e tal?” E a gente não tinha nada, entendeu? E no fundo, eu e o Paulo, a gente botou todo o dinheiro numa sacolinha bem feinha assim. E eu e o Paulo fomos à cidade, entregar o dinheiro pros caras. Os caras não acreditavam, né? Foi uma aventura.

Carla: Então, eu tava fazendo umas contas aqui, tem… deve ter levantado uns 60… R$80,000, por aí?

Marcília e Reinaldo: É, por aí, por aí.

Mônica: Antes da Ana Célia fazer a pergunta seguinte vou furar aqui o nosso roteiro. Eu queria saber um pouco do sucesso do pessoal do Víctor porque eu acho que em função dessa peça também é que rolou muita coisa até a Unicamp, né? Foi um grande sucesso?

Marcília: Foi, foi um grande sucesso! O Pessoal do Victor foi um grande sucesso, mas depois disso a gente montou “Os Iks” que era uma peça sobre uma tribo. Quer dizer, era uma analogia né? Sobre uma tribo africana. Eles eram coletores nômades e eles foram confinados. Eles estavam morrendo de inanição. E o Peter Brook tinha montado e nos doou os direitos. E o Celso falou: “Olha, a gente tem que montar” e ele dirigiu. Foi “Os Iks”, né?

Reinaldo: “Os Iks” foi uma coisa muito importante para a gente, sabe? Eu lembro que o Sábato (Magaldi) fez uma crítica dizendo: “É uma maneira de olhar o teatro”. Foi uma coisa que acabou marcando nosso trabalho para sempre. O meu, o da Marcilia e do Márcio. Que é essa visão antropológica social, de você tentar tornar visível comunidades que normalmente, na sociedade, não existem. Nós acabamos trabalhando o peão de boiadeiro, o cigano, de novo o índio na nossa montagem e o Celso, ele aplicou todo trabalho que ele tinha aprendido com o (Jerzy) Grotowski, né? A história da psicofísica, tudo. Aquilo foi uma coisa. O processo de trabalho foi muito incrível, entendeu? E marcou muito a gente, tanto que depois nós fomos para a “Carrera do Divino”. Antes disso teve O Processo, do Kafka, mas a gente mudou a nossa visão. E o Peter Brook foi muito generoso porque ele não cedeu só os direitos, né? Ele mandou para gente um material fantástico, com o dialeto, porque o texto, que eu não sei se vocês conhecem o texto, é todinho em dialeto. 

Carla: Vocês têm o texto que o Peter Brook mandou?

Marcília e Reinaldo: Eu tenho. Temos em alguma pasta por aqui.

Reinaldo: Na verdade, assim, o Iacov Hillel, ele assistiu ao espetáculo em Paris e ele trouxe a ideia, porque ele estava com a gente, né? Na época do Victor, na viagem, ele acabou substituindo algum ator que não foi e tal, e ele trouxe essa ideia. Daí o Celso escreveu pro Peter Brook e tal. E esse material foi um material incrível porque, você lendo o texto, na primeira leitura a gente não entendeu nada do texto. Daí, quando veio o material, foi bárbaro, porque a gente pôde falar o dialeto e porque naquela época você não podia falar do índio brasileiro, o índio nosso. Era questão de segurança nacional, né? Se outras peças você mandava o texto e eles cortavam, imagina você fazer um texto sobre… inclusive naquela época você tinha matança dos índios de uma forma horrorosa, por que você ia reclamar para quem? Entendeu? Porque os militares faziam o que dava na telha.

Marcília: Foi naquela época que a gente teve as fotos daquela indígena pendurada de cabeça para baixo e eles cortavam as partes dela

Carla: Que foto é essa?

Reinaldo Olha, eu acho que é da Manchete. Pra mim era da Veja, mas outro dia, eu, conversando com o Márcio, ele disse que não era não. Era da Revista Manchete. É uma foto assim tão assustadora E porque essas coisas acabaram minando também o regime militar, né? Porque começou de repente aparecia isso, né? Com a morte do Herzog e essas coisas que a gente sabe. Isso foi minando por que era uma coisa assim. Existem relatos, não é? Posso falar impressionantes. Os caras cercarem uma aldeia entrar e matar todo mundo, inclusive crianças é uma coisa horrorosa.

Ana Célia: O teatro de vocês, eu acho que tudo isso que você tá contando, tinha uma relação com o ambiente político e social da época muito forte, né? Isso é uma coisa que no teatro de vocês foi marcante por isso, né? Tanto O “Victor ou as Crianças no Poder” quanto “Os Iks”, não é? Teve esse marco. Ter essa ligação com o momento político, né? Vocês acham isso?

Marcília: Sim. “O Processo” também, que é do romance do Kafka, que a gente adaptou pro teatro. 

Reinaldo: “O Processo”, nós fizemos no Oficina, antes daquela mudança que teve lá, tipo palco e plateia. E eu me lembro que eu fazia assim uma das personagens. Eu fazia um cara meio truculento e eu ficava tirando fotos da plateia. Porque é o que os militares faziam. E alguns vieram tirar fotos do espetáculo, o pessoal da censura mesmo. Era uma coisa muito acintosa. Era um espetáculo que tinha esse peso. Mesmo o espetáculo “Cerimônia para um Negro Assassinado” do (Fernando) Arrabal, ele tinha também isso. Aliás o Ismael Ivo. O primeiro trabalho dele em teatro foi com a gente. Ele era trucidado. Um negro com essa força, essa vitalidade. E duas personagens da peça. Uma era o Márcio Tadeu que fazia e a outra era o Adilson que fazia. Eles trucidavam esse negro. Então tinha essa conotação forte.

Ana Célia: E agora, continuando aqui no nosso roteiro, como é que foi a ida para Unicamp? Como que surgiu essa ideia desse grupo ir para Unicamp? Foi todo mundo, foi uma parte do grupo, e como que vocês… se vocês foram recebidos lá, né? Qual foi o acolhimento da comunidade acadêmica pra um Grupo de Teatro? Assim, conta um pouco disso e, também, assim, como é que vocês se dividiram para atuar? Como ficou definida a divisão do trabalho de vocês no trabalho? Como era? Como funcionava isso?

Reinaldo: O (Joseph) Campbell, ele diz uma coisa assim: “Você tem uma série de acontecimentos na vida, e na hora parece que não tem conexão nenhuma, mas quando você olha a tua história, uma coisa levou a outra, que levou a outra.” Eu acho que essa ida pra Unicamp ela tem a ver também com o fato de o Celso ter feito uma mudança na EAD. Porque a EAD tinha um tipo de escolha de candidatos, era muito estruturado.

Marcília: Era muito pelo physique du rôle. Aquelas pessoas que tinham um corpo bonito, olho azul, olho verde, as bonitas, né? E aí ele mudou, vieram as baixinhas, bundudas e narigudas.

Reinaldo: Ele fez uma coisa interessante, que foi o estágio, né? Porque você fazia aquela prova tradicional de ir lá mostrar um ou dois textos, fazer uma improvisação, uma ceninha e acho que tinha uma prova escrita.

Marcília: Eram coisas do tipo: você tinha que descer uma escada como um rei e descer como um mendigo.

Reinaldo: É que eram professores que vinham já de uma outra era.

Marcília: Da fundação da escola. 

Reinaldo: Fizeram um trabalho lindíssimo. Só que, assim, era uma época de mudança nos anos 70 e, daí então, o Celso propôs um mês de seleção. Aí os professores começaram a conhecer muito mais os candidatos, pra poder escolher e tal. E eu sinto que esse foi o caminho que a gente acabou absorvendo e, mais que isso, eu lembro que, por exemplo, na época da EAD, eu assistia, fazia questão de assistir aos ensaios de outros diretores; muita gente era convidada pra ir lá. Então, tinha essa abertura de você poder ver o trabalho dos colegas e o trabalho de outras turmas. Tudo isso acabou que, quando o Celso foi convidado pra ir pra UNICAMP, me parece que ele foi sozinho. Acho que tava ele de um lado, o Benito (Juarez) de outro. A música começou um pouco antes que a gente. E pelos relatos que ele fez pra gente, falaram pra ele: “Desenvolva o Centro de Teatro e nós damos verba para três doutores”. Ele falou: “Não. Tem muito mais sentido trazer o meu grupo pra cá. A gente desenvolve um trabalho que a ideia era fazer um laboratório” – que foi o que aconteceu com o Lume – “e vamos fazer nossas experiências; porque eu já tenho um grupo que vem desde a EAD, e que tem uma carreira”. Naquela época a gente tinha três ou quatro espetáculos de muito sucesso e nós aceitamos porque era, assim, um desafio e nós estávamos acostumados com a pesquisa teatral. Porque todos os espetáculos que a gente fazia com o Celso, e mesmo quando a gente fez o Cerimônia, com o Paulo, a gente sempre partiu da pesquisa, ou pesquisa de linguagem. Então foi isso, eu acho que foi um casamento.

Carla: Vou perguntar uma coisa também, fora do roteiro aqui, mas que tem tudo a ver. Esse jeito novo… foi extremamente novo esse jeito de montar um espetáculo, então. Pesquisar o autor, pesquisar o corpo, pesquisar o figurino. Pesquisar isso aí não tinha até década de 70 ou estou errada?

Marcília:  Acredito que não… tinha um grupo anterior ao nosso que era, que também era dirigido pelo Celso, que era o Royal Bexiga’s Company. Mas eles fizeram poucos espetáculos. Eles começaram esse jeito de trabalhar, não é? Mas eles pararam antes.

Reinaldo: Vamos dizer o seguinte: o ator e ele tem que ser um curioso, né? O diretor também. Pesquisa, de certa forma sempre teve. Mas é uma coisa muito a partir da palavra do texto, né? Vamos dizer assim, aquela escritura cênica que você ia focar muito mais no ator, que você muitas vezes partia do trabalho físico, como o Celso fez, não era uma coisa muito comum. O que existia era o teatro político do Arena e do Oficina, que era um trabalho fortíssimo e, também, aquele trabalho do Arena, com pessoas maravilhosas. Agora, essa coisa de você se voltar de uma maneira mais meticulosa pro trabalho de ator, eu acho que vem mais ou menos nessa fase. Não vou dizer que foi com o nosso grupo, porque também as coisas não acontecem assim. Por exemplo, você tinha no rio o “Asdrúbal trouxe o Trombone” que fazia um trabalho parecido, só que eles faziam um trabalho de crítica social, quer dizer: era o pessoal da zona sul … que fazia comédia.

Marcília: Mas na EAD quando houve essa modificação que o Celso, todos os professores e a direção aceitaram, foi impressionante. A Yolanda Amadei, a Cândida, o Clóvis Garcia todos embarcaram, né, com essa com essa coisa e a EAD, acho que teve uma mudança também.

Reinaldo: Tem uma coisa que era assim: a gente não conseguia ter muito intercâmbio e encontros porque a censura era muito forte. As pessoas não têm a mínima ideia do que é viver numa ditadura militar, não têm. Na EAD eles colocaram um cara para poder ouvir o que a gente falava.

Marcília: Assistia ensaio, aulas, tudo.

Reinaldo: Ele foi obrigado a ser contratado e você era vigiado, então eu acho que justamente por isso, você tinha um furacão dentro de você pra botar para fora.

Reinaldo: É assim: quando Celso fez essa proposta pra Unicamp, ele falou com o Rogério Cerqueira Leite. Ele, naquela época, tinha um cargo que coordenava todos os departamentos da Unicamp. A primeira pessoa que recebeu a gente foi ele. Foi uma coisa maravilhosa. A gente não sabia, imagina, ser professor. Nenhum de nós tinha essa ideia. Eu lembro que ele falou uma coisa pra gente: “Escuta, vamos supor que a gente queira ensinar a fazer sapato; a gente vai chamar quem? Um sapateiro. Se ele tem formação ou não é outra história. Tem bastante experiência? Sabe fazer? Ele vai ensinar e depois ele tem que se virar pra conseguir os títulos que forem necessários e tal”. Nós fomos muito bem recebidos por ele. Agora, a arte nunca foi muito querida dentro da universidade. Por quê? Porque a gente era de bagunçar as coisas. Eu lembro, inclusive com a Carla, a Carla deve lembrar essa história, quando a gente fez o espetáculo no Tênis Clube tinha um tiro no espetáculo. Era um Tchecov, e tinha um tiro, e eu fui avisar os funcionários. “Ah, pode dar um tiro”. Quando nós demos o tiro no ensaio, a Carla dava o tiro. Os caras vieram tudo encher o nosso saco. Não queriam mais que a gente ensaiasse lá. Então, o teatro ele tem esse lado, essa inquietação que as pessoas não entendem muito bem. E isso é só um exemplo, mas serve pra tudo: pras reuniões que a gente tinha na Comissão Central de Graduação (CCG), os caras olhavam torto pra gente, entendeu? Pra conseguir verba era uma loucura total. Mesmo prevendo que ia precisar chamar uma pessoa diferente, um diretor pra poder dirigir no final, que era uma forma de fazer uma ponte entre os alunos e o profissionalismo, era muito difícil de ser aceito. No começo esse abraço do Rogério foi maravilhoso, mas depois vieram as dificuldades, que foram bem grandes.

Marcília: Uma vez o Almeida Prado pediu pra mim, que ele tinha que ir na CCG, e pediu para que eu fosse pedir vistas ao processo. E a Yara Jamra tinha me dado uma sandália desse tamanho, com estrelas prateadas, uma saiona. Eu fui. Chegando lá tinha aquela ferradura e eles me olharam assim e um dos participantes começou a falar. Ele era da medicina. Foi aí que eu vi o que eles pensavam realmente: “Imagina que eles estavam tentando fazer um Centro de Teatro. Essa gente suja que vem bagunçar a universidade…” e falei assim: “Olha eu vou pedir vistas ao processo”. Saí com a minha tamanca e eles ficaram todos quietos. Eu me perguntei: “O que eu vou fazer aqui?”

Carla: Você lembra quem era o médico?

Marcília: Ai, não lembro quem era o médico, ele era da CCG. Não lembro o nome dele. Eu sei que eles eram todos doutores. Ele elogiava a matemática: “Tem uma professora de matemática que ensina matemática. Agora vem essa gente ensinar…” foi horrível.

Mônica: Então a recepção não foi tão boa assim. Fora o Rogério.

Marcília: Não. Lá em cima não foi.

Mônica: O Rogério teve um papel muito importante nesse período me parece que ele foi o incentivador de tudo ali.

Marcília: Ele mora perto de Campinas. Eu lembro que ele morava num sítio que tinha anta, tinha um monte de bichos, um sítio grande. 

Carla: Agora eu gostaria de saber, assim, para a gente registrar isso, Marcilia e Reinaldo: Como é que foi esse começo que vocês davam aula, na verdade para os alunos da Unicamp, de química, física, medicina etc. Como é que vocês dividiram as aulas? Como é que era o papel de vocês? Como é que vocês articularam isso que foi o embrião de tudo?

Reinaldo: Foi pedido pra nós, logo de cara, uma pesquisa. Para assinar o contrato tem que fazer uma pesquisa; procurar uma pesquisa. E cada um propôs dentro daquilo que queria. Eu sempre tive vontade de fazer direção, de trabalhar ator, então eu fiz um rascunho de pesquisa e o Celso sempre deixou as pessoas muito livres para escolher o que elas queriam. No meu caso, fazer trabalho de ator com a intenção já de fazer uma direção. Na época não era graduação. Era um centro de teatro, era um curso livre. Eu fiz a minha primeira direção, que foi a “Patética” do João Ribeiro Chaves Neto, que a Marcilia dirigiu junto e o Adilson também. Eles fizeram a assistência e eu fiz a direção. A partir daí, e como eu tô falando do meu caso, eu segui esse caminho de dar aula de interpretação, que era uma coisa que eu gostava. Essa minha experiência da “Patética” foi uma coisa muito forte. O texto não estava nem proibido, estava cassado, porque teve um concurso do SNT, o Serviço Nacional de Teatro fazia um concurso anual, e que o texto “A Patética” ganhou e depois foi interditado pela censura, porque falava do Herzog. Então, não tinha como montar esse texto. Mas, dentro da Universidade era possível, embora eu tenha sofrido uma pressão danada e a Marcilia também. O pessoal ficava dizendo que a gente ia ser demitido.

Marcília: Eles ligavam meia-noite, a gente não sabe que…; mas nós continuamos.

Reinaldo:  Nós fizemos no Ciclo Básico e tinha mais de 5000 pessoas, e veio muita gente assistir, o autor veio assistir. E a gente fazia aquelas ceninhas do Brecht do “Terror e Miséria no III Reich”, que o caixão fica fechado, pra fazer a divulgação do espetáculo. Então, a partir daí, no meu caso, eu me dirigi para o trabalho de ator e as outras pessoas seguiram as suas vontades.

Carla: E a Marcilia?

Marcília: Comecei a trabalhar com aqueles bonequinhos de barro de Taubaté. A mãe do Márcio Tadeu tinha me dado uma coleção daqueles bichinhos e bonecos. O lenhador, a mulher puxando água, então eu levei esses bonequinhos e, a partir daí, os alunos criavam personagens e historinhas. A mulher que puxava água, de repente, se comunicava com o lenhador. Eram marido e mulher. Eles criavam historinhas e a gente montava. Era uma coisa bem simples.

Reinaldo: Tem uma coisa também, a Marcília, eu e o Márcio, a gente tinha feito um trabalho com o Ballet Stagium. A gente ficou muito tempo seguindo eles, então tinha uma tendência também de trabalhar essa parte mais física, que a Marcília acabou fazendo.

Carla: E você já escrevia também, né Reinaldo?

Reinaldo: Eu escrevia. Eu nunca montava um texto sem dar uma mexida. Essa coisa de sacralizar o autor nunca me passou pela cabeça. Você não pode trair o autor, trair o pensamento dele, do que ele quis fazer, mas você precisa dar um pouco a visão do teu contemporâneo, do que tá acontecendo. E nessa coisa de mexer, eu acabei me apaixonando pela dramaturgia, mas, no meu caminho a dramaturgia veio bem depois. Primeiro veio o trabalho de ator, a direção na Unicamp e depois é que eu fui pra dramaturgia.

Marcília: Eu queria falar um pouquinho do Adilson Barros. O Adilson era de Sorocaba, amigo do Paulo Betti e da Eliane Giardini, fizeram teatro lá. Ele acompanhava sempre os nossos trabalhos no começo do Pessoal do Victor. Aí, quando fizemos o “Cerimônia para um Negro Assassinado”, o Paulo convidou ele para entrar em cena. E aí passou a fazer parte do grupo. E fomos para a Unicamp juntos.

Reinaldo: Era uma pessoa muito querida. Olha, desde a cena. Era uma coisa gostosa trabalhar com ele em cena. Fantástico! E como pessoa, nossa! A gente brincava o tempo todo. Era realmente uma pessoa fácil de você criar um laço afetivo.

Mônica: Ele deu uma colaboração muito grande na Unicamp. Foi um grande incentivador. E como que foi depois desse processo de início, que vocês davam a aula da maneira que vocês tinham, digamos, a inspiração de cada um, como que, depois, foi feito esse conceito do curso da Unicamp? Ele tinha diferenças da EAD? Por onde que foi a perspectiva, o caminho na visão de vocês?

Reinaldo: Bom, foi assim: a ideia, no começo, era a gente ter um laboratório de teatro e nunca foi fazer uma graduação, mas eu lembro que começou a ter uma pressão grande do (José Aristodemo) Pinotti, Reitor da Unicamp. Um dia nós tivemos uma reunião, ele falou: ou vocês abrem esse curso ou eu acabo com o centro de teatro, foi uma coisa bem assim. Porque era uma ambição dele. Ele falou:  olha, a Unicamp tem que ter um curso de teatro. Aí nós falamos: “Já que a gente vai fazer isso, vamos fazer com todos os sonhos daquele momento”, e eu lembro que o Celso trouxe uma série de currículos. Tinha o curriculum da EAD, tinha o da Sorbonne

Marcília: Tinha de uma escola na Bahia, em Porto Alegre. E a gente estudou tudo isso.

Reinaldo: E coisas que a gente queria. Eu lembro que a gente queria uma cadeira que pudesse trazer convidados de várias áreas, não necessariamente só de teatro, mas da música, sei lá. Alguma coisa bem aberta. Nós conseguimos colocar; e daí, a partir disso, cada um se projetou numa cadeira pra fazer o trabalho. Na parte teórica, nós começamos a chamar pessoas pra vir. Não lembro exatamente quais pessoas entraram em que momento, mas a Maria Lúcia Candeias veio no começo pra parte teórica, a Neyde Veneziano veio um pouco depois. Logo em seguida veio o Marcio Aurelio, e a gente foi montando um time de pessoas que a gente sentia que eram fortes, que a gente gostava e que topavam o projeto. Porque também é difícil: você faz teatro em São Paulo, e você viaja e vai e volta. É uma coisa que nem todo mundo topava. Eu lembro que o Ilo Krugli quis participar, mas não deu por causa dessa história da mobilidade. Mais tarde a gente levou a Raquel Trindade, como vocês sabem, então foi isso.

Carla: Aninha, Mônica…

Mônica: Eu acho que quem tem que falar agora é a Ana.

Ana Célia: Ainda nessa sequência da criação de um curso de teatro, ouvindo um pouco dos momentos históricos, parece que na década de 80, a Unicamp estava em plena expansão. Era uma universidade crescendo na abertura política de fins da década de 70 para 80. Até a arquitetura do prédio, de uma escola sem cercas, é uma coisa que mostra essa expansão. E aí, fazendo até uma comparação com a década de 50, quando a EAD foi criada, que tinha também, né, a gente olhando de fora, a gente vê que há um desejo de crescimento cultural paulista assim, né? Não foi à toa que foi criada a Escola de Arte Dramática, assim como a Vera Cruz, na área do cinema. Tinha um empenho da sociedade; pensando um pouco nisso. Do mesmo jeito, a Unicamp era um novo momento cultural. Vocês sentiam que existia esse desejo de renovação através da cultura e através do teatro também? A gente tinha ali, a música nascendo. Também o departamento de dança. Esse entusiasmo através da cultura, pelo nascimento de um curso e como isso se refletiu na estrutura do curso também? Eu acho que vocês já falaram um tanto disso, nessa renovação que foi feita de já pelo Celso Nunes, na época em que ele era professor na EAD, e ele trouxe essa fala para gente também. Contando como ele quis modificar o que vinha sendo feito dentro do curso da EAD, acompanhar um grupo até a sua formação e isso modificou, também, acho que a forma como era lá, e eu acho que o reflexo disso, nessa criação do curso de Artes Cênicas da Unicamp, dentro de um momento em que acho que existia um desejo de renascimento, na década de 80, o fim dos 70, assim como hoje a gente está querendo, clamando por um renascimento logo. Fazendo uma ponte. Como vocês olham isso?

Reinaldo: É uma coisa muito simbólica. Tinha um professor. Ele plantou umas árvores lá na Unicamp. Ele era da música, se não me engano. Era uma pessoa super entusiasmada com a universidade. Veja bem, a ECA já tinha uma estrutura. Já estava formada, já existia todo um estatuto que regia o curso da USP. Lá na Unicamp era tudo novo, até as árvores estavam sendo plantadas naquela época. Esse professor falava com entusiasmo: “eu estou escolhendo tal árvore para plantar. Daqui a uns anos isso vai ter crescido.”

Marcília: Acho que se chamava Zé Maria. Já é falecido. 

Reinaldo: E esse entusiasmo que eu tô falando dele, era nosso também.

Marcília: E uma total liberdade para fazer, para agir. 

Reinaldo: Você imagina, não existiam doutores ainda. O Celso era graduado, depois logo ele fez o mestrado, já lá na Unicamp. E isso tinha uma coisa assim “vamos criar juntos!” E isso que era bonito. Essa coisa de você, naquele momento, participar de um negócio que você tem certeza de que vai virar algo grande. A Unicamp era um caldeirão de conhecimentos e a gente tinha muito contato com outros professores. A computação era do lado, você às vezes conversava com um, com outro, e tinha um brilho no olhar. Sabe, o aluno que está se formando e que vê tudo pela frente, esse mundo todo pela frente. Isso é uma coisa muito bonita e isso existia, nessa época, com vários professores que estavam entrando pra Universidade. Eu acho que só podia dar certo, claro! Depois de um tempo eu me lembro que eu, quando fui para coordenação, eu já logo em seguida fui chamado para preparar a avaliação do curso e a modificação do curso. Porque a Universidade também tinha isso. E eles não queriam que você se acostumasse com um padrão. E era legal. Foi difícil eu entender, quando nós acabamos de formar a primeira turma. Mas é essa hora mesmo que tem que reavaliar o que tá funcionando, o que não tá; vou mudar aqui, mudar ali. Então a Unicamp, eu não sei como é agora, mas naquela época tinha muito isso, sabe? Uma coisa de estar sempre se expandindo.

Carla: Eu acho que a Unicamp… muito nova também. É uma universidade jovem. Não tinha nada estabelecido. Eu me lembro que eu frequentava muito a EAD. Porque eu conhecia, tinha amigas, a Marcelinha de Lucas, um monte de gente. Eu ia assistir antes de eu entrar na Unicamp, e era uma fórmula já estabelecida. E aqui tinha essa liberdade, esse desejo de acertar e as coisas iam se moldando no fazer, durante o curso. Isso era bonito também. Então não tinha essa preocupação de estabelecer logo de cara: é isso. Tinha essa liberdade. A liberdade, às vezes, deixa a gente louco, né? Mas saem coisas maravilhosas, porque você tem tudo a ser feito. Eu me sentia assim lá na Unicamp.

Mônica:  Tem uma coisa legal que o Reinaldo falou: tinha poucos doutores. Não tinham doutores e eu acho que hoje a universidade é muito “carreira”, né? Quer dizer, é “grau, grau, eu quero isso, eu quero aquilo”, e acho que naquela época existia um ideal; uma vontade que não é uma carreira acadêmica. Era um curso de teatro diferenciado.

Reinaldo: A gente não entendia direito. A gente não entendia direito a estrutura da Universidade. Eu lembro que uma vez aconteceu com um aluno que copiou – era um péssimo aluno -, ele copiou um artigo, alguma coisa que eu passei escrito. Quando eu olhei o artigo eu falei: “Nossa, isso aqui é do Guzik!” É uma crítica do Guzik que ele pegou, copiou e assinou e deu como prova. Aí, eu falei na comissão de graduação: “O que que a gente faz com ele? Vamos chamar, vamos conversar.” Aí um já falou: “Tem que dar uma suspensão” e outro falou não sei mais o que… Aí, eu lembro que foi o Waterloo que falou: “Olha, peraí, existe o estatuto da Unicamp. E a gente tem que se pautar pelo Estatuto da Unicamp”. Daí nós lemos o estatuto. O que eu quero dizer é o seguinte: a gente não sabia direito, a gente seguia muito pela emoção e ficava indignado com algumas coisas. Um exemplo: se você queria trazer um cara superlegal para a Universidade, como no caso do Ilo, por exemplo. Aí pediram para ele um memorial. Ele falou: “como é que eu faço um memorial?” Aí a gente foi falar com ele. E ele disse: “Eu não vou fazer isso. Isso aí é uma autobiografia. Se é pra fazer isso, eu não consigo”. Por outro lado, todas as pessoas que entraram lá, elas entraram com a energia que a gente tava falando, do novo, e a gente ficava nas reuniões, mas eu lembro que a vontade da gente não era essa coisa da carreira. Claro, tinha a carreira. Pra falar a verdade, a gente até não batalhou pela carneira – os antigos. A gente se estrepou um pouco por causa disso, mas é também a ideia da coisa, porque também nós nunca abandonamos o teatro. A gente fazia o trabalho com o nosso grupo. Depois que o Pessoal do Victor se dispersou, acabou, o nosso grupo continuou. Eu, a Marcilia e o Marcio criamos o nosso grupo que se chamou Lux in Tenebris e continuamos trabalhando. Então existia essa ponte entre as experiências da gente e as experiências que a gente levava para a universidade.

Carla: O grupo de vocês se chama Lux in Tenebris?

Reinaldo: Isso.

Ana Célia:  Quando surgiu esse grupo, o Lux in Tenebris, até o nome do grupo se tornar Lux in Tenebris, veio de onde? E aproveitando, qual a influência de Brecht no trabalho de vocês, se é que teve, assim, mais influência do que do que todos os outros autores, artistas encenadores que vocês trouxeram para cena. Conta um pouco para gente.

Reinaldo: Depois que o Pessoal do Victor se separou, justamente quando nós fizemos “A Carrera do Divino”, que fez um sucesso danado, eu, a Marcilia e o Marcio, a gente já estava junto desde a EAD. Aí, nós pensamos o que a gente ia fazer… Aí nós fizemos uma peça chamada “Cães Famintos”, foi uma temporada muito curta. Logo em seguida nós fizemos Luz nas Trevas (Lux in Tenebris) do Brecht. A gente tinha feito uma pequena experiência na Unicamp. Eu lembro que nós fizemos também “Os Sete Pecados Capitais”, do Brecht. O Brecht acompanha a gente há muito tempo. Eu lembro que uma vez o diretor de teatro chamado Fernando Peixoto, que montava muito Brecht, disse: “Se você montar Brecht, daqui para frente tudo o que você for fazer vai ser diferente”. E isso é a pura verdade, porque você acaba vendo o aspecto da estrutura social, como essas personagens estão dentro desse jogo do capital e, também a maneira como o Brecht trata a encenação. Essa coisa do distanciamento, ela não é só importante para a encenação, ela é importante para a vida, né? De vez em quando você tem que dar um passo para trás e ver o que tá acontecendo com você, como é que você tá agindo, como você tá interagindo com o teu meio, com a sociedade. Então foi uma influência muito grande. Mesmo os textos que depois eu escrevi pro Lux in Tenebris, eu fui olhar e tem um pouco dessa visão. De procurar não só um relacionamento pessoal, mas o relacionamento social. Porque aquilo está acontecendo naquele momento, na tua sociedade.

Ana Célia: Uma outra questão, que a gente queria saber um pouco mais desse processo da “Carrera do Divino”, né?

Mônica: A gente queria que vocês falassem sobre a “Carrera do Divino”; sobre a pesquisa; sobre as referências de vocês. E uma segunda pergunta, eu acho que é dentro disso tudo que a gente tá conversando: valeu a pena trabalhar na Unicamp? Valeu a pena formar esse grupo e formar esse curso? O que vocês herdaram disso? Porque para nós é uma referência e nós tivemos a sorte de ser da primeira, da segunda turma, então a gente pegou esse movimento que vocês falaram tanto agora. Eu acho que não é a mesma coisa; acho que quem fez os primeiros anos da Unicamp é uma coisa, quem fez depois é outra coisa.

Marcília: Eu vou responder sobre “Na Carrera do Divino”. “Na Carrera” foi o seguinte: no Rio tinha o grupo “Asdrúbal trouxe o Trombone”, fazia a peça “Trate-me Leão”, e aqui a gente tava saindo de “A Vida é Sonho”, do Calderon, e não tivemos tanto sucesso. A gente fazia com tradução da Renata Pallottini e direção do Celso, mas a gente fazia em versos a peça inteira, e ainda era a época militar, daquele presidente que tinha um cavalo, o João Figueiredo. Tinha uma hora que o Adilson falava: “Dai-me um cavalo!”, e eu pensava que, quando ele falasse isso, a plateia iria rir. E não foi. Não aconteceu nada. A gente fazia a peça e olhava, a plateia estava dormindo. E no camarim da FAAP, o Paulo falava: “A gente tem que fazer o ‘Trate-me Tatu’” e a gente começou a falar das histórias caipiras.

Reinaldo: A maioria era do interior, acho que só eu que sou de São Paulo. O resto do pessoal era do interior.

Marcília: Eu contava as histórias de Guaíra, de onde eu sou, lá perto de Barretos. O Paulo, a Eliane e o Adilson, de Sorocaba. Aí, chegou uma hora que a gente pensou: “Nossa, vamos chamar alguém para escrever isso” e veio o (Carlos) Soffredini e já estava tudo pronto. Ele só colocou em forma dramática.

Reinaldo: Falando nessa história de pesquisa, foi encaminhado para a gente um livro chamado “Os Parceiros do Rio Bonito” do Antônio Cândido, e ele contava a trajetória que ele fez, uma pesquisa junto com o Fernando Henrique (Cardoso). Eles iam de cavalo. O Fernando Henrique segurando um gravador enorme. A partir de Tietê, eles foram entrando pro interior.

Marcília: Atravessaram o rio pra chegar até o Mato Grosso, parece, onde tinha a viola com tripa de macaco, olha só, que loucura. Eles queriam achar o cururu, que é uma dança circular.

Reinaldo: E eles foram vendo que até a linguagem mudava. Aqui a gente falava “você”, mais para o interior era “vosmecê”, depois era “vancê”, “ocê”. Era como se caminhasse através do tempo e fosse regredindo. Esse livro serviu de base pro Soffredini escrever o texto. Quer dizer, a base eram as histórias, mas lá você tinha alguns mitos. Ele fez uma estrutura muito interessante de ritos de passagem. Foi uma felicidade o Soffredini entrar naquele momento. Fora ele ser uma pessoa querida, que a gente já conhecia há algum tempo, era um grande dramaturgo.

Marcília: Essa história da peça “Na Carrera do Divino”, na verdade era a história do velho Nhô Roque Lameu, que era a história do livro do Antônio Cândido. Aí, a gente resolveu colocar “Na Carrera do Divino” porque tinha a Carrera do Cururu, cantada pelo Adilson e pelo elenco.

Reinaldo: Sobre a Unicamp, Mônica, a minha passagem pela Unicamp mudou a minha vida, porque desde a EAD a gente começou a ter um certo compromisso com conhecimento, com a pesquisa, mas foi na Unicamp que isso entranhou na gente, sabe? E era uma coisa doida porque, quando a primeira turma… já tinha feito algumas coisas antes, mas, “gente, como é que eu vou ensinar eu não sei fazer isso”, entendeu? Eu sei dirigir e fui aprendendo junto com os alunos. E isso foi mudando minha vida, porque lá dentro eu comecei a dirigir O meu primeiro texto, eu escrevi, eu estava na Unicamp. Continuei com o trabalho de ator até um certo ponto e eu pude entender como é importante a escola. Essa coisa de você concentrar conhecimento num determinado lugar e, a partir daí você irradiar ele. É uma coisa que, para pessoas com mente muito curta, como tá acontecendo agora, eles não entendem isso. O fato de você ter um local em que tem liberdade, em que você consegue conversar sobre tudo o que você quiser, sempre com a ideia, naturalmente, de conhecimento, de aprofundar determinado tema. Essas pessoas não conseguem entender. Não é só essa época aqui não. Eu lembro da época em que o Maluf estava como governador interventor em São Paulo. Ele quis acabar com os professores na Unicamp. Ele cerceou o Rogério Cerqueira Leite. Ele enfiou o Rogério numa salinha pequena lá no fundo e falou: “Olha, enquanto eu for governador você não vai fazer mais nada, entendeu?” Então eu acho que a Universidade tem sempre esse movimento do “Luz nas Trevas”. De tentar iluminar, por pior que seja o momento, de jogar luz nas coisas. Uma hora passa. Então, eu me sinto assim, eu sou um felizardo de ter participado desse processo. Isso me fez amadurecer como artista, como homem, como uma pessoa que pensa. De ter encontrado pessoas lindíssimas, sabe? Fora os meus colegas, os estudantes também. Eu lembro que em algumas aulas eu falava: “Nossa, aconteceu um pequeno milagre naquela cena”.

(problemas técnicos)

Reinaldo: Essa coisa que de repente acontece e que faz você pensar que valeu a pena. Começar a dar aula naquele calor danado que a gente passava e, de repente, acontecia alguma coisa muito bonita, muito criativa. 

Mônica: Agora a Marcilia, o que foi pra você a Unicamp?

Marcília: Foi maravilhoso, porque quando o Celso nos convidou, eu pensei: “Vou chegar lá e vou dar minha aula e pronto”. E me modificou como pessoa. Porque eu fui descobrir em cada aluno, aquelas meninas que vinham com 17 anos, uma era de Limeira ou era de Leme, mas ela tinha ficado em casa até essa idade. Eu olhava pros olhinhos daqueles alunos e isso foi me modificando e essa ideia de chegar e dar uma aula, eu fui entendendo as pessoas, as alunas, os alunos e cada um era um universo que a gente tinha que trabalhar junto. Não sei se eu respondi.

Carla: Nós deixamos de perguntar alguma coisa que vocês queiram falar? Algum assunto, alguma coisa a gente pode esquecer uma coisa ou outra? 

Ana Célia: Tem uma influência da, das artes orientais. Eu não tive essa oportunidade, mas, na aula do Reinaldo, eu acho que teve uma época que o aquecimento e a preparação para cena de um trabalho de corpo eram através do Tai Chi Chuan. Hoje eu acho, assim, que tem uma influência supergrande. Eu não tinha essa consciência na época, mas a Yoga, o Zen Budismo para a gente entender um estudo da presença… Então, eu queria que você pudesse falar um pouquinho, você e Marcilia, sobre as influências, se existiu realmente isso, determinou o caminho né? Onde levou esse contato com essa arte oriental que eu posso chamar assim, o Tai-chi; se houve uma influência do Zen Budismo no trabalho de vocês, ou não; ou é só uma percepção que a gente teve assim, superficial. Não sei. Teve uma influência, isso marcou, levou a algum resultado? Deu para entender o que eu perguntei?

Reinaldo: Deu, deu. Como eu falei, né. É sempre uma sequência. A vida da gente é uma sequência de eventos, né? Quando eu entrei pra EAD, a minha ideia era muito mais focar um texto do que outra coisa. Nao tinha essa ideia de um teatro mais contemporâneo, que trabalhasse o corpo e tudo o mais. Quando o Celso veio com o Grotowski, com a psicofísica, nos “Iks”, principalmente, aquilo foi me chamando a atenção pra esse lado do trabalho físico. E eu lembro que a primeira coisa que eu fiz não parecia com Tai Chi, parecia com Kung-fu, eu sempre achei muito importante essa história do ator se despir. Então foi uma coisa importante. Comigo mesmo no trabalho de ator. Essa coisa da passagem, de quando eu tô como Reinaldo na sociedade e vou passar para uma personagem. Esse passo de uma coisa pra outra, eu procurei vários caminhos para conseguir. Então, primeiro eu comecei com Kung-fu, porque ele dava uma concentração grande e você saía um pouco do teu ego. Depois é que eu cheguei no Tai-Chi. Eu tive a sorte de fazer o Tai-Chi com dois mestres: o Mestre Liu, que era uma pessoa fantástica, que tinha oitenta e poucos anos, só falava chinês e tinha uma tradutora do lado; e depois o mestre Wang, que fazia uma coisa mais de luta marcial e tal. Agora, sempre o que me interessou nessas coisas foi esse processo de concentração, de limpar um pouco a minha mente. E eu achava que isso era muito importante pro trabalho do ator. Então, eu acho que teve uma importância e até hoje eu faço o meu Tai-Chi. Porque, fora isso, tem uma coisa que os japoneses têm uma coisa de ter um exercício durante a vida toda. Alguns fazem ikebana, outros vão pro zen e fazem meditação, e o Tai-Chi é um pouco uma meditação em movimento. Eu resolvi pegar esses movimentos e fazer pro resto da minha vida, que vai ser bom. E tem sido muito legal, e quando eu faço os meus trabalhos de teatro, eu procuro fazer, principalmente em certos momentos da cena, que eu sinto que o ator tá tenso, que tem alguma coisa que ele tá carregando pra cena que tá sujando um pouco a cena, eu falo: “peraí, vamo parar, vamo fazer um exercício e depois a gente volta”. Eu uso não em termos de estética, mas em termos de processo de trabalho. Foi uma coisa que me influenciou muito.

Marcília: Então, eu não tenho tanto essa atitude que o Reinaldo tem em relação ao Tai-Chi e à física, essas coisas. Eu tenho alguma influência porque a gente fez durante muitos anos o Stagium. E lá tem o Ademar Dornelles e a gente chama ele de monge. Um monge completamente zen; e ele tem, ele teve muita influência sobre mim, tanto que a minha lareira é cheia de Buda, a flor de lótus com uma coisa que você bate na hora do jantar que faz um som, mais por aí. O monge Ademar Dornelles que me influenciou bastante nessa coisa do zen.

Reinaldo: E ele tem um trabalho muito bonito. A gente chama ele pra fazer o trabalho de ator, né? Um trabalho de desconstrução do movimento. Faz um trabalho físico e depois ele desconstrói o movimento. Então, o Ademar, tem um trabalho muito bonito de fazer essa desconstrução do movimento. Isso é uma influência do trabalho do Stagium, mas também ele trabalhou com artes marciais. Ele esteve na Índia durante um tempo, no Tibet. Engraçado, porque eu não penso muito nisso, Ana. Foi legal você perguntar, porque eu vejo que tem um caminho aí, uma ligação.

Mônica: Agora é aquele momento que a gente tem que colocar aquele vídeo do Paulo Betti e vocês já viram, vocês receberam ele, né? Então eu vou fazer ele rodar aqui de novo para constar na gravação e essa gravação também a gente vai editar posteriormente, né? 

Paulo Betti (em vídeo): Olá Reinaldo! Quanto tempo, né? Eu quero dizer que tenho muito orgulho do que nós fizemos juntos, dos trabalhos que fizemos, das peças que fizemos em colaboração. E quero dizer também que tenho uma grande alegria em poder gravar esse recado aqui para vocês, nesse momento que estamos participando juntos, também, desse projeto ligado à memória do curso de teatro da Unicamp, que eu participei no começo. Então, queria nesse momento lembrar de momento Inicial onde nós íamos de São Paulo para Campinas, pela Rodovia dos Bandeirantes, recém-inaugurada, naquele Fusca que eu tinha recém-adquirido. Eliane, eu, você Reinaldo, Marcília e Márcio Tadeu. E nós cinco íamos de fusca e vocês ajudavam a pagar a gasolina. Muito obrigado e, olha: saúde para vocês, muitos anos de vida, muita felicidade e parabéns! E estamos juntos nesses depoimentos aí, pela memória da escola que a gente ajudou a estruturar e que vocês foram professores por muitos anos. Um abração! Tchau!

Carla: A gente queria agradecer, então, a disposição, a generosidade do Reinaldo Santiago e da Marcília Rosário que estão nos ajudando a construir mais um pedacinho para reconstruir a história do departamento de Artes Cênicas da Unicamp. Obrigado a todos e até o nosso próximo bate-papo.

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