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Um curso à procura de artistas pesquisadores

Nos meses finais de 1985, em um vestibular organizado às pressas para vencer as burocracias de uma transição na reitoria, o curso de artes cênicas da Universidade Estadual de Campinas deu os primeiros passos com, entre outras propostas, a de agregar pessoas interessadas em pensar teatro em um lugar fora do eixo e sem a afobação do relógio. Depois de duas décadas de ditadura militar, o Brasil acreditava na renovação e a vida acadêmica de quem pretendia se transformar em artista não poderia ficar restrita a modelos de influências externas clássicas ou de professores e alunos acomodados em saturadas posições hierárquicas.  

Coube ao encenador Celso Nunes, um dos fundadores da companhia Pessoal do Victor, conceituar a escola que, a partir do ano seguinte, começaria a formar profissionais que seguem até hoje como referência de interpretação e pesquisa acadêmica. O grupo teatral, constituído na década de 1970, se caracterizava pela montagem de obras recriadas sob um olhar coletivo e próximas do contexto brasileiro. Contava em seu elenco com, entre outros, os atores Paulo Betti, Adilson Barros, Waterloo Gregório e Eliane Giardini, todos envolvidos em cursos de extensão no campus do distrito de Barão Geraldo, mesmo antes da oficialização do instituto. Sob essa visão de reinterpretar o mundo baseado em um prisma local nasceu a graduação em Artes Cênicas da Unicamp.

O mineiro Petrônio Gontijo prestou esse vestibular, ainda sem a garantia de que seria aprovado, no seu último ano como secundarista. Deu tudo certo e, instalado em Campinas, o aspirante a artista conheceu um novo mundo em que, assim como na cena, o objetivo precisaria encontrar o subjetivo. Entre os anos de 1986 e 1990, o jovem pertenceu a essa primeira turma, formada por 25 cobaias, muito desejada pela universidade, mas, claro, submetida aos desafios de quem participava de um modelo em experimentação. “A universidade era um lapidador de pedras brutas e, entre tantos professores, cito o Marcio Aurelio, que me fez compreender o espírito acadêmico, mas me deu ferramentas para romper com ele sempre que precisasse”, afirma o ator, depois de três décadas de carreira, entre o teatro, a televisão e o cinema.

Gontijo cita que os ensinamentos de Marcio Aurelio valorizavam tanto os métodos do russo Constantin Stanislavski (1863-1938) como o do alemão Bertolt Brecht (1898-1956). As lições encontraram ressonância nas aulas de outro grande professor do curso, Luís Otávio Burnier (1956-1995), especialista em teatro físico e um dos fundadores do LUME Teatro, sediado em Barão Geraldo. Para Gontijo, quando o ator descobre que deve aliar a emoção e a técnica para alcançar os melhores resultados vem a compreensão da importância das ações físicas, existe uma virada de chave que valoriza a interpretação: “Está tudo dentro de nós”, resume.

Da mesma turma inaugural, porém com uma formação mais elipsada, veio a atriz Lavínia Pannunzio, também chegada do interior de Minas Gerais direto para a Unicamp. Depois de duas reprovações na EAD (Escola de Arte Dramática da USP), Lavinia ingressou no curso com tanta expectativa e inquietação que acabou se dispersando dos colegas e trilhando caminhos que, vez por outra, a levaram para fora da faculdade. “Eu era uma garota do interior, ávida por transformações, comecei a ficar angustiada com as limitações da vida universitária”, confessa. “Eu fui reprovada no primeiro ano porque devia fazer um trabalho em cima de uma peça do dramaturgo Qorpo Santo e enlouqueci, me apaixonei tanto pela obra desse cara que realizei uma pesquisa que compreendia tudo o que ele tinha feito, montei tudo… Só que não era isso que o professor tinha pedido.” 

Entre idas e vindas, Lavínia acabou formada em 1992, quase jubilada, e garante que a grande lição que carrega da Unicamp é que lá pode reafirmar a sua liberdade e entender, muitas vezes, que a sua curiosidade pode gerar interesse público. “Trabalha, trabalha, estuda a coisa, que só assim se faz teatro”, diz ela, citando um ensinamento que carrega do campus. Assim como Petrônio Gontijo, a atriz cita Marcio Aurelio e Luís Otávio Burnier como professores-chave de sua formação. “Marcio me empurrava para os abismos mais profundos, para as maiorias provocações, sem me deixar esquecer que para tudo é preciso estudo e disciplina e o Burnier, com sua libido, sua prontidão, me apresentou o meu próprio corpo em um estado de presença muito forte.”

Tão expressiva quanto a trajetória solidificada por Lavínia é a da atriz Débora Duboc, que, vinda de Ribeirão Preto, ingressou na segunda turma, em 1987, e pegou o canudo em 1991. Para ela, o curso de artes cênicas da Unicamp tem um eixo que o difere de qualquer universidade, porque busca um ator científico, um ator pesquisador e, assim, se aprende que não existe erro no trabalho, basta procurar com muito estudo a possibilidade de um novo caminho. “É a máxima objetividade retórica para atingir a máxima subjetividade poética”, diz a artista, em citação ao mestre Marcio Aurelio, com quem trabalhou, já profissionalizada, na década de 1990, na Cia. Razões Inversas. “Eu sinto a Unicamp na minha pele, tenho uma vida até ela e outra depois, experimentei o mundo sob outros ângulos e isso foi fundamental na artista em que me transformei.”

Das aulas de Raquel Trindade (1936-2018), com quem Débora declara ter aprendido tudo sobre cultura popular, vem as lembranças dos alunos dançando maracatu no pátio da universidade. “Era a coisa mais linda, um lugar de encantamento, tudo muito bonito o que a gente viveu naquele barracão, com telhas de amianto, muito quente, mas um caldeirão criativo”, conta. No período de graduação de Débora, uma greve de nove semanas e meia quase comprometeu o ano letivo, mas os estudantes não se acomodaram e levavam artistas de São Paulo, como o diretor José Celso Martinez Corrêa e a atriz Maria Alice Vergueiro, para bate-papos com os alunos. “A gente pegava o carro da Luah Guimarãez, minha colega de turma, levava e buscava o pessoal para ficar lá conversando com a gente, já que aula, claro, não podia ter.”

O dramaturgo e diretor Newton Moreno frequentou as artes cênicas da Unicamp entre 1992 e 1995. Vindo de Pernambuco, carregava um diploma universitário de administração de empresas e trabalhava com hotelaria. “Voltar ao teatro diante daquelas propostas me deram liberdade de escolha, me vi diante de um cardápio bem grande para escolher o caminho que quisesse”, conta ele, celebrizado nas primeiras décadas de 2000 pela autoria das peças Agreste, As Centenárias e Maria do Caritó. No campus, a formação de Moreno foi como ator, mas lá dentro começou a se experimentar em outras áreas, como direção, cenografia, figurino e a própria dramaturgia, e uma consequência dessa diversidade foi a fundação da Cia. Os Fofos Encenam, ao lado das colegas de turma Carol Badra, Maria Stella Tobar e Simone Evaristo, entre outros.

Como lembrança inesquecível, Moreno cita o seu espetáculo de conclusão de curso, Primeiras Estórias, uma adaptação da obra de Guimarães Rosa, dirigida por João das Neves (1934-2018). “Este trabalho me deu um foco, me fez tomar um trilho que me devolveu o Nordeste, marca que representaria o meu teatro no futuro”, comenta. Para o artista, a localização geográfica da Unicamp contribui para a imersão dos alunos em seus objetivos acadêmicos. “Estar fora do mercado de trabalho de São Paulo, longe das demandas e exigências, é importante para resguardar esse espaço de grupo e pesquisa da linguagem”, completa. 

O ator Chico Carvalho, que estudou na Unicamp entre 1997 e 2000, recorda a formação plural recebida na graduação. Um meticuloso trabalho de ator para as artes do palco, que incluíam aulas de canto, dança, máscara, circo, expressão vocal e corporal, além de interpretação, claro, tomava quatro anos da rotina acadêmica para, só no derradeiro ano, montar um espetáculo. “Nós ficávamos enfurnados em laboratório para destruir a imagem que tínhamos do que seria um ator, formando ferramentas de expressão que desembocavam em cena só na reta final”, diz Carvalho. “Era o contrário de tudo o que se imagina quando se entra em uma faculdade de teatro e só se pensa na hora de mostrar o nariz e, quem sabe, ser descoberto para outros trabalhos.” 

Para o artista, o curso de Artes Cênicas da Unicamp não é um curso de métodos: “A gente passava por profissionais que falavam coisas diferentes e te davam mais dúvidas que certezas sobre como proceder para ser um bom ator, o que considero um ganho”, afirma. Carvalho reforça que não acredita que ser ator é um estado de espírito, então decidiu estudar e assume que carrega um enorme orgulho de ter sido formado pela Unicamp, uma universidade que, segundo ele, determina uma condição sobre a função ética, política e filosófica do artista. “A Unicamp me deu tudo aquilo que eu faço em um espaço público, e tenho a consciência de que preciso retribuir isso de algum jeito para o público, para o teatro.”     

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