o

Entrar na luz

Eu te olho. Você me olha.

Como saber o que se passa por detrás dos olhos que se olham?

Esse é um grande mistério da vida humana, da nossa consciência, entender como é que nossa mente processa essa experiência de estar vivo e relacionado com outrem.

Contudo, uma situação assim, intrigante, no plano real, toma aspectos diferentes quando a troca de olhares ocorre noutro plano, no de uma cena teatral que revela uma imitação da vida. No teatro, eu/ator tenho conhecimento prévio do texto e do desenrolar da história na qual estou metido. E confio que meu interlocutor, para quem olho e que também me olha, conheça (como conheço) o enredo no qual ele, como eu, está metido. Estamos sob a luz, observados pelo espectador como se estivéssemos sobre a lâmina de um microscópio. Cada fração de segundo conta. Temos de interagir, de viver, num modo crível, uma vida de faz de conta. Se, ao fazê-lo, nos alongamos, perdemos a atenção dos espectadores e, se nos precipitamos, eles não conseguirão nos acompanhar. Em ambos os casos perde-se a empatia e o interesse deles pelo nosso desempenho. Eles não saberiam fazer melhor, mas enquanto observam a cena, têm o sentimento de que sabem. Há um medidor de precisão dentro de cada espectador, para quem cada fração de segundo durante a ação dos intérpretes, conta. Há, também, expectativas: espero do ator, meu interlocutor que também espera de mim. Em comum, temos o conhecimento do texto, da cena, dos movimentos e submovimentos da ação da peça, para cujo desenrolar os nossos Eus foram emprestados aos personagens que representamos. Forma-se, entre nós, um campo magnético cheio de energia, do dar e receber. E entre nós e a plateia, um campo energético também atua, com os espectadores recebendo mensagens sígnicas que chegam do palco e que, modificadas, para o palco voltam, como momentos de silêncio coletivo, de risos, de choros, de aplausos. Quando tudo dá certo. Quando não, os atores se desconcentram, a pouca energia do palco gera inquietação na plateia, que olha o celular, mexe-se nos assentos das poltronas, come doces ou ainda lembra que pode ir ao banheiro. Fazer teatro é um fenômeno que envolve duas realidades distintas (palco e plateia) sendo que a do palco vive da experiência real da vida de cada ator. Então, fala-se em “viver o papel” ou “criar o personagem” ou “dispor de sua própria antropologia” – oferecer ao processo criativo seu arsenal de emoções vividas, que jazem nas prateleiras da memória, para o quê, um ator precisa ser ele mesmo, absolutamente. Quanto mais um ator for inteiramente ele mesmo, de melhores recursos interpretativos serão criados seus personagens.

Mestres da arte de interpretação redigem teorias, correntes estéticas buscam a linguagem cênica pelo movimento do corpo, a voz passa por inflexões psicoplásticas, desenham-se os muitos movimentos psicofísicos, os textos viram partituras de ações físicas, o teatro e a dança se reencontram, como juntos existiram na Antiguidade.

Estamos na luz. Eu te olho, você me olha… interagimos, atuamos, observados que estamos. Eu sou inteiramente eu/personagem e você, inteiramente você/personagem. Da nossa inter-ação uma falsa história é contada ao espectador, que quer acreditar nela e aplaudir.

Gente com o mesmo nível de interesse se une, grupos teatrais se formam, escolas surgem para ensinar essa arte tão complexa do ator de teatro. Como transformar um papel em pessoa? Como “introjetar” o personagem?

Eram questões práticas que surgiam naqueles anos de ditadura militar e de censura cultural de 1970. E que cursos de teatro, cujos fundamentos se pautavam no princípio matemático de que mais com mais é igual a mais, não conseguiam responder de forma satisfatória.

Eu trabalhava na EAD – Escola de Arte Dramática de São Paulo – e no DAC/ECA/USP – Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. A EAD oferecia diploma de curso técnico profissionalizante e o DAC, bacharelado em direção teatral. Ambas as instituições eram alinhadas com o mesmo citado princípio, o de que cerca de 6 a 9 matérias (distintas umas das outras) cursadas pelo corpo discente a cada semestre, ao longo de 8 semestres, resultariam num artista. E não resultavam, necessariamente. Então a matemática estava errada? Ou aquele princípio que afirmava que + com + = + não se ajustava adequadamente à resultante desejada? O que acontecia? Atores recém formados e devidamente “instrumentados” para atuar no palco não introjetavam o personagem, não obstante a voz, a postura, o figurino estarem em conformidade com as exigências da peça… como se sabe, a introjeção (intro = para dentro) é um mecanismo de incorporação do mundo exterior, usado em psicanálise para designar o que pode ocorrer desde o nascimento de um indivíduo que entra na luz: sua percepção do mundo exterior já introjeta sons, coisas, pessoas (pai, mãe, mitos etc.).

Na linguagem artística o termo interiorização pode também ser usado para o mesmo fenômeno. Ambos são o sentido oposto de projeção que é, também, um mecanismo da psicanálise frequentemente usado no fazer artístico. Projetar as introjeções de seu mundo pessoal no personagem “que irá viver” sob outra luz (a da cena) é metade de um bom caminho andado para qualquer intérprete.

Naquele contexto, surgia nos capinzais campinenses, o campus da nossa Unicamp.

Capitaneado por um físico e pensador brilhante, o Prof. Dr. Rogério Cezar de Cerqueira Leite, em acordo com o Reitor Prof. Dr. Zeferino Vaz, foi dado início à criação do Instituto de Artes. E, por iniciativa da amiga Profa. Dra. Marlyse Meyer (casada com um também físico, Dr. Jean Meyer), pesquisadora da cultura popular e amante das artes, acabei conhecendo o Prof. Cerqueira Leite que, sabendo que eu era diretor e professor de teatro, me convidou a deixar a

USP e a me “agrupar” com alguns professores artistas (ou seria o contrário, artistas professores?) que também iriam integrar o novíssimo Instituto de Artes da Unicamp.

Era a oportunidade de se criar um “núcleo de gente de teatro” e não uma escola de teatro (nos moldes das já existentes). O foco era nas pessoas e não na (até então inexistente) estrutura curricular; foco no fazer teatral e não numa soma de disciplinas subjugadas a grades curriculares e a quantidade de horas/aulas impostas pelo MEC. O objetivo era a criação artística se sobrepondo à necessidade de obtenção de um canudo (um diploma impresso em papel e autenticado por assinaturas).

Claro está que nossas coordenadas de trabalho contrariavam qualquer ideia acadêmica de institucionalização do curso. E, em poucos anos de atividades teatrais criadoras entre professores e alunos, também foi ficando claro que, sem institucionalizar, não se poderia contar com a dotação de verbas para a manutenção das atividades.

Nosso núcleo inicial de trabalho tinha se originado na USP sob a forma de uma cooperativa teatral e precisaria “abrir bem os olhos” se quisesse continuar na institucionalizada Unicamp. Aquela exigência, que viria a se transformar numa necessidade premente num futuro próximo, naquele momento soava como uma imposição inoportuna, como um freio nas atividades em curso… por que? Pelo fato de que (1) só uma minoria dentre nós, artistas/professores, tinha graduação universitária. A maioria nem o bacharelado (ou licenciatura) tinha. Todos eram portadores de um diploma teatral (técnico profissionalizante) como atores formados pela EAD/ECA/USP. E o núcleo se subdividia em menores grupos de trabalhos, onde (2) os alunos/integrantes eram aceitos sem terem passado por vestibulares. Aqui cabe uma observação que considero, teatralmente falando, importante: qualquer pessoa de Campinas (ou região) podia se integrar a um desses grupos, independentemente da sua escolaridade, idade, sexo ou religião e frequentar o campus, se beneficiando de tudo o que um ambiente de ensino superior oferece….

Era sabido, com base na nossa experiência prática de teatro, que a exigência de ter de se submeter aos exames vestibulares, resultaria em turmas homogêneas, de alunos da mesma faixa etária. Isso é, e sempre será, um fato. Fato limitador, em teatro, já que as características pessoais de um grupo heterogêneo possibilitam distribuições de papéis mais afinadas com certas exigências das dramaturgias. Via de regra, é claro que um ator jovem, nos termos do aprendizado pessoal, pode se beneficiar com as descobertas reveladoras da natureza humana durante a criação de um personagem mais velho ou muito mais velho, enquanto que a recíproca raramente é verdadeira! Para haver a projeção de um papel, a interiorização dos dados do personagem é a premissa básica. Para isso, o ator deve conhecer-se, saber de si, ter acesso com destreza ao seu universo particular para, desse manancial de circunstâncias e memórias vividas, dar vida ao seu personagem. Sem exageros, são procedimentos laboratoriais que envolvem os intérpretes, sessões sobre emoções demandam tempo, mergulhos na alma não condizem com horas marcadas.

Contudo, nenhum argumento demoveu o Reitor Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti da necessidade de pressionar para que as atividades fossem institucionalizadas. O Núcleo de Pesquisa Teatral precisava virar Departamento e as atividades se organizarem para oferecer Bacharelado em Artes Cênicas. Foi uma época de “pega pra capar”. Pouco identificados com isso, alguns professores deixaram a Universidade, outros correram atrás de vagas para iniciarem mestrado e/ou doutorado. Os alunos inscritos perderam as inscrições nos grupos e os próprios grupos foram deixando cair as atividades. Aqueles que, efetivamente, queriam ficar na carreira artística, procuraram se inscrever nos exames vestibulares.

Coube à minha pessoa, quem sabe por ser o cara mais velho e viajado da tchurma, criar as grades curriculares, organizar reuniões com os professores visando sistematizar disciplinas e ementas, cargas horárias, adaptar o local físico para aulas teóricas e aulas práticas, secretaria, almoxarifado, guarda-roupa teatral, enfim, sonhar com um departamento de artes cênicas cujas atividades academizadas não impedissem a experiência dos alunos/atores de SEREM COMPLETAMENTE ELES MESMOS (como ensinava Jerzy Grotowski, no Teatro Laboratório em Wroclaw/PL)

Assim, com o DAC/IA/UNICAMP começando a oferecer seu bacharelado, novos professores academicamente titulados foram sendo contratados, pois o oferecimento da grade das novas matérias assim exigia. Nem tudo era mar de flores, algumas matérias dependiam até do conhecimento polivalente dos integrantes do quadro docente para ser ministradas. Mas a vida é sonho e os sonhos, sonhos são, como nos ensina, desde o século 17, o grande dramaturgo madrilenho Calderon de La Barca. E foi com a encenação dessa peça (que contou com um lindo cartaz criado pelo saudoso pintor hiper-realista Prof. Alvaro de Bautista), no Teatro do Centro de Convivência de Campinas, que o Departamento de Artes Cênicas do IA/Unicamp oficialmente iniciou.

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