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Artistas e modos teatrais populares na Unicamp

A graduação em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas nasceu diferenciada por dois motivos básicos: na forma inicial de contratação de um corpo docente singular e no ensino de práticas e pesquisas cênicas voltadas para o universo popular. 

O ponto de partida do curso contou com o grupo de teatro O Pessoal do Victor que, em 1979, acabara de montar a peça Na Carrêra do Divino, texto de Carlos Alberto Soffredini, sob a direção de Paulo Betti, que também atuava. O espetáculo, aclamado pelo público e pela crítica, tornou-se importante marco na história do teatro paulista, estendendo-se a todo o território nacional como verdadeiro ícone teatral e poético do homem do campo, com suas falas, lidas e sofrimentos. O núcleo teatral “do Victor” havia estreado com a montagem de Victor ou As Crianças no Poder (de onde o nome do grupo), em 1974, texto de Roger Vitrac e direção de Celso Nunes.

Celso Nunes, então, foi convidado pela Unicamp para conceber um curso de nível superior em artes cênicas. Contrariamente ao rito acadêmico universitário, Celso chamou alguns integrantes do Pessoal do Victor para o início e a consolidação do curso. E assim chegaram os artistas Adilson Barros, Wanderley Martins, Marcília Rosário, Reinaldo Santiago, Waterloo Gregório e Marcio Tadeu. Eis, pois, um elemento diferencial na formação do corpo docente do curso de teatro da Unicamp: a maioria dos professores e das professoras não tinham vínculos com a formalidade acadêmica e, portanto, não possuíam títulos de mestrado ou de doutorado. Mas eram reconhecidos pela prática do teatro, pelo fazer teatral em suas diversas áreas e tarefas. 

Ao lado dos integrantes do Pessoal do Victor, outros profissionais foram contratados, alguns com títulos acadêmicos, outros não. Aqueles e aquelas que não possuíam títulos acadêmicos passaram a ter vínculo com a universidade como “professores-artistas.” 

O segundo dos motivos que diferenciaram o curso da Unicamp das demais graduações em artes cênicas públicas de São Paulo foi a contratação de profissionais vinculados à pesquisa e à prática cênica com o olhar voltado para a cultura brasileira de matriz popular, oriundos da academia e da prática artística. Talvez a experiência com a montagem de Na Carrêra do Divino tenha pesado significativamente nessa opção. Afinal, o universo popular caipira do interior do estado, com seus causos e lendas, sonhos e limites, cantos e poesia, conflitos e resistências eram a força do texto de Soffredini. 

Como este é o enfoque prioritário de meu breve testemunho, cabe destacar alguns nomes significativos em seus respectivos campos de atuação. Vinda da pós-graduação da USP e com ampla experiência nas lides do palco, Neyde Veneziano e sua incansável atuação e investigação do teatro de revista brasileiro veio a se somar aos professores-artistas. A dança brasileira foi contemplada com a contratação de Raquel Trindade. As artes circenses estiveram presentes com as aulas do professor Luiz Monteiro. Estava montado o tripé inicial que trazia o espírito da cena popular brasileira para as Cênicas do Instituto de Artes da Unicamp.

Os artistas que formaram o corpo docente inicial da graduação em Artes Cênicas da Unicamp tinham experiência consolidada na prática e na atenção dada à cena popular brasileira. Unidos pelas mesmas ideias, apaixonados pelo estudo dos procedimentos cômicos de longa duração, alunos e professores criaram uma dinâmica única, com pesquisas históricas e, ao e mesmo tempo, experimentais, onde a força do ator-estudante vinha da vivência artística de textos famosos e de outros menos conhecidos. Enquanto se estudava um determinado período, se experimentava o fazer teatral daquele mesmo período. Tal concepção se estendeu à pós-graduação e a Unicamp ofereceu disciplinas especificamente voltadas ao teatro de matriz popular, bem como desenvolveu pesquisas voltadas a esse campo. 

Fui convidado a ministrar disciplina na pós tratando da história, do repertório e da prática interpretativa dos palhaços brasileiros. Participei de diversas bancas de avaliação de mestrados e doutorados, trabalhos que contribuíram para o reconhecimento e valorização das práticas cênicas populares e não hegemônicas. Dentre tantas desenvolvidas na Unicamp, tive o privilégio de conhecer e avaliar pesquisas a respeito das personagens/máscaras da commedia dell’arte, do elemento grotesco nos comediantes populares brasileiros, das personagens cômicas no circo-teatro, da dramaturgia do circo-teatro na voz de um dos principais autores, Antenor Pimenta, da comédia popular brasileira, nas lentes de Luís Alberto de Abreu, do quarteto Os Trapalhões nas telas e na televisão, de Mazzaropi e seu percurso do circo para o cinema. Os temas pareciam nada acadêmicos, mas conquistaram espaço e dimensão na universidade ao serem estudados minuciosamente. Porque o terreno era fértil e as sementes germinavam. Mais um simbólico reconhecimento se juntou a essa profícua produção de estudos populares: a trajetória de Dercy Gonçalves foi tema da tese de doutorado de Virginia Namur, sob a orientação da Professora Neyde Veneziano. Juntas, elas conquistaram o Prêmio Capes de Tese (2010). Essa foi a primeira e única vez que uma pesquisa de Teatro foi coroada com o título de “a melhor tese do Brasil na área de Artes”. Orgulho-me de ter feito parte desse processo, pois fiz parte da banca de defesa do doutorado. Essas pesquisas trouxeram inestimável contribuição para a ampliação do campo de investigação em artes cênicas no Brasil.

Com o passar do tempo, graduação e pós-graduação consolidadas, assistiu-se ao afastamento dos profissionais que inicialmente se engajaram no projeto, quer seja por aposentadoria, quer seja por opção preferencial pela carreira artística, quer seja pelo descompasso salarial entre professores-artistas e professores titulados, quer seja pela força do ritual acadêmico, que prioriza e valoriza seus pares. 

No Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, as sementes das práticas teatrais e dos artistas populares foram lançadas. E germinaram esplendorosamente, deixando um sólido legado para o Teatro Brasileiro. 

São Paulo, dezembro de 2023

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