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Eu Me Lembro

1. A SEMENTE DA ÁRVORE

O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo) 

Jorge Larrosa Bondía, “Notas sobre a experiência e o saber de experiência

O exercício dessa escrita me empurrou com doçura no abismo lento da memória. Re-cordare, trazer de volta ao coração. Recordar um período no qual foi possível sonhar. O coração como semente.

No início foi assim: conversas debaixo de uma árvore. Não havia salas de aula, nem paredes, nem cortina, nem blackout. Havia a árvore, a sombra e a terra – e o grupo. Reza a lenda (eu me lembro), que essa foi a semente do curso de Artes Cênicas. Começou como extensão e se é extensão é que havia um centro: uma jovem universidade criada sob o modelo humboldtiano e um par de cientistas1 com especial carinho pelas artes, talvez porque lhes faltasse algo (é, a Arte faz falta). Engraçado o curso de Artes Cênicas estar até hoje na Rua Pitágoras, 500. Para o filósofo grego os números eram a ciência dos princípios e das forças vivas e o cinco era a vibração do puro movimento. Na sua forma geométrica, o pentagrama era o símbolo do ser humano diante do universo. O ser humano, o coração do teatro.

Depois das aulas sob a sombra do jatobá, as Artes Cênicas se institucionalizam como bacharelado em Artes Cênicas, em 1986, tomando o ator (o ser humano), como centro irradiador do fenômeno teatral. Foi criado por integrantes do Grupo teatral Pessoal do Vitor, com a direção pedagógica de Celso Nunes. O Grupo ganhou destaque e brilho com a premiada montagem da peça “Na Carreira do Divino”, o primeiro trabalho no qual o grupo parte da criação coletiva baseado na vivência social, pesquisando a cultura do interior paulista e o universo caipira. Como os integrantes eram do interior de São Paulo, o processo se inicia com uma investigação de suas próprias origens que aos poucos se somam a outras fontes literárias e estudos sobre a cultura popular brasileira. Essa gênese imprimiu no curso três características fundamentais que se converteram na ética do curso: a prerrogativa do trabalho teatral como um ato coletivo de criação e investigação, o diálogo baseado na horizontalidade dos processos pedagógicos objetivando a autonomia do sujeito e a conexão profunda com a realidade social do território. E, tecendo esses três pontos, uma pedagogia singular, com ênfase na prática criativa a partir do corpo em cena, como o ser humano na nave do pentagrama, uma semente singular que brota na terra e abre sua copa para o cosmos.

2. A ARTE DO TEATRO

A arte existe porque a vida não basta

Ferreira Gullar

Quando ingressei no bacharelado na primeira turma do curso de Artes Cênicas na UNICAMP, em 1986, a aula inaugural foi dada pela escritora Hilda Hilst (na época, artista residente no Instituto de Artes), numa inesquecível fala sobre a relação entre Arte e Dor, sobre criação e dor. A vida dói. E essa dor – que é uma forma condensada de sentir –, quando ganha forma, chamamos de arte. Uma bela e precisa definição de arte: intensificação da vida. Aprendi com Hilda que “se a gente olha tudo de um jeito vagaroso, tudo é sagrado”, que tudo tem seu duplo imaterial, tudo tem a sua alma, e, para mim, a cena – o teatro –  é o lugar desse trânsito, o “trânsito livre entre o cá de baixo e a sabedoria do de cima”2

A gente vê tanta coisa, lê tanta coisa, vive tanta coisa. Cabe tanta coisa numa pessoa. Cabe muito mais coisas nos grupos, nos coletivos, pois esses são ampliadores de saberes. Cada pessoa, uma sentença; cada corpo uma história. Aprendi com o professor e dramaturgo Paulo Vieira que para se dominar um povo, precisa-se dominar primeiro seu imaginário. Foi essa minha introdução ao teatro brasileiro, foi essa minha introdução ao decolonial antes mesmo dele virar moda. Foi esse meu alerta para pensar no poder da imaginação e do imaginário, antes de tudo.  Aprendi com o diretor e professor Marcio Aurélio, a frase-farol sobre a Arte que me guia desde os longínquos dias de graduação até hoje: “o máximo de objetividade retórica, para se alcançar o máximo da subjetividade poética!”3 Suas aulas e suas encenações foram e são ainda meu combustível secreto. Se meus pensamentos se tornam chagas no meu cérebro e “meu cérebro é uma cicatriz”, sua direção de Hamletmachine4, com Marilena Ansaldi, orquestra a minha dor numa sinfonia de gestos – palavras; se fico desanimada, lembro de sua Opera Joyce5 e o delicioso sim de Molly Bloom, 

… e então eu pedi a ele com meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus braços em torno dele sim eu puxei ele para baixo para mim para ele poder sentir meus peitos todos os perfumes sim o coração dele batia como louco sim eu disse sim eu quero sims. 

Aprendíamos assim: com arte e ofício. Com Marcio Aurelio, Márcio Tadeu, Helo Cardoso, Wanderley Martins, Adilson Barros, Marcília do Rosário, Reinaldo Santiago, Watherloo Gregório, Luíz Monteiro, Raquel Trindade, Luís Otávio Burnier, Paulo Vieira, Neyde Veneziano, Sara Lopes e Maria Lucia Candeias. Aprendíamos com artistas. Evoé!

Mas a vida é puro fluxo. E efemeridade. Por isso ela precisa do sim, da fragilidade, simplicidade e risco dessa afirmação: sim, como Molly Bloom ou como Clarice, em A Hora da Estrela: “tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.”

Estilos de atuação diversos, exigências diversas. Meu aprendizado sobre as Artes da Cena foi se moldando como pedra lisa, acariciada por tantas correntezas, pois na Pitágoras 500 era assim, diversidade, multiplicidade cósmica ao lado de amigos e amigas, colegas de classe e professores. Humanos, demasiadamente humanos. Hoje tem marmelada? Tem sim sinhô! Tem comédia dell´arte, circo e blangandãs, tem máscara neutra, ação física e memória emotiva, tem superobjetivo, gestus e dialética, atletismo afetivo, alquimia e treinamento, punctum, maracatu e umbigada, palco elisabetano, arena e italiano, um galpão, um barracão, um gramado. E a Árvore a nos olhar…

 Cada poética pedindo novos dispositivos de acionar o corpo-alma, novas formas de composições, de arranjos, mas sempre com um recorte experimental e altamente físico. Como atriz, acho fascinante como cada tema, cada texto, cada linguagem, estilo, professor e diretor, abre possibilidades de reconfigurar o que já se “achava sabido”. A cada novo encontro, realizado com profundidade, abre-se um “novo órgão da percepção”.  Aprendi isso com Goethe, via as práticas chekhovianas: “O ser humano só conhece a si mesmo na medida em que conhece o mundo; ele se torna ciente de si mesmo dentro do mundo, e ciente do mundo dentro de si. Cada novo objeto, bem contemplado, abre um novo órgão de recepção dentro de nós.”6

3. PERGUNTAS

Não é monstruoso? Aquele ator pode forçar a própria alma a lhe sofrer com o pensamento. E era uma fantasia, um sonho de aflição: agindo a alma ele ficou de rosto branco, o aspecto conturbado, lágrimas lhe vieram aos olhos, a voz entrecortada: o desempenho inteiro com gestos e expressões se lhe ajustou à ideia. E tudo aquilo, por coisa nenhuma! Por Hécuba! Que é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, que a deva prantear?

Hamlet, cena II, ato II

O que está no DNA da Pitágoras, 500? Que tipo de curso esse pensamento gerou? Que tipo de artista era formado? Que tipo de teatro se disseminou a partir daí? Quais as marcas desse DNA ainda hoje? O que ficou? O que se perdeu? O que se perdeu e o que se ganhou com a  institucionalização do curso? O conhecimento gerado pelas Artes Cênicas é reconhecido como conhecimento? A liberdade exigida pela arte encontra suficiente espaço nas normas acadêmicas? O que a Artes Cênicas ganharam com a institucionalização? O que a instituição Unicamp ganha com a presença das Artes Cênicas? E a cidade de Campinas?

E mais…

Depois de 50 anos do Instituto de Artes e quase 40 anos de Artes Cênicas como é possível que a UNICAMP ainda não tenha um… teatro? Como é possível que depois de quase 40 anos o curso ainda funcione no mesmo “barracão provisório”? Como é possível que depois de formar tantos artistas e professores, artistas-pesquisadores mestres e doutores que criaram tantas obras, núcleos e outros cursos Brasil a fora, o próprio curso não tenha uma sala de espetáculo? Um teatro laboratório? Que seus professores e professoras nunca tiveram uma sala? Enfim, qual será o futuro das Artes Cênicas da Unicamp na Unicamp? E em Campinas, berço do maior Projeto de Cultura do país – O Projeto Cultura Viva/Pontos de Cultura?

Para desencantar esse feitiço e re-encantar as Artes Cênicas e o Barracão da Pitágoras, 500, resolvemos abrir esse Baú – esse site – para que as alegrias e utopias plantadas com tanto amor possam florescer com o vigor e a beleza que merecem.

  1. No caso, os engenheiros Rogerio Cerqueira Leite (também físico) e Yaro Burian. ↩︎
  2. Os dois trechos entre aspas são partes do conto Agda, de Hilda Hilst. ↩︎
  3. Essa guia baliza meu rigor técnico, o capricho com a forma e seu sentido. ↩︎
  4. Marcio Aurelio dirigiu Hamletmachine, de Heiner Muller, com atuação de Marilena Ansaldi, em 1989. Esse espetáculo ainda pulsa luminoso em minha memória. Me lembro de ver a elegância e o amor da atriz, ao final do espetáculo, recolhendo com imenso carinho cada objeto de cena, como se guardasse um precioso rebanho. ↩︎
  5. Opera Joyce, direção de Márcio Aurelio de 1988, texto de Alcides Nogueira e atuação de Vera Holtz. Uma celebração da linguagem. ↩︎
  6. GOETHE, Johann Wolfgang von. Contribuições para a ótica (1a parte) & O experimento como mediador entre objeto e sujeito. São Paulo: Antroposófica, 2011, p.102. ↩︎

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